16.2.10

“carnevale”


Stefania vivia em sonhos meus. Vivia em Veneza também. Morena, olhos verdes e personalidade construída em histórias de sedução. Stefania era também “carnevale” prometido, de Veneza… Solene, erótico, máscaras, vestidos longos e folhos, brilhos, dourados, brancos sedutores… Brancos em máscaras com lábios vermelhos desenhados, e linhas negras que demarcam os olhos rasgando-os em provocação para nós. Depois, as plumas em enfeites de cabeças e tecidos que nos tocam quando os vemos. Sedas, linhos, rendas, que cheiram. Perfumes que experimentamos com os dedos e sentimos na excitação da alma e no bater acelerado do coração. Stefania caminhava em passos de princesa, com ruídos de tecidos que acompanham em imperceptíveis aplausos. A máscara branca cobria-lhe a face, mas duas pintas douradas simulando sinais preciosos, desenhados em gota sob os olhos, deixavam um contraste triste nos olhos realçados com linhas grossas e negras. Recebeu-me assim em “carnevale”. Algumas pérolas distribuídas por tecidos que lhe cobriam a cabeça, enfiadas em arames finos e dourados, lembram gotas de orvalho em movimentos de chuva miudinha. Imagino o corpo de Stefania, sob cetins de muitos verdes em longos deleites e folhos. Cornucópias douradas espalham-se em rodopio no vestido, deixando à roda meus sentidos. Num carrossel de desejos, senti a sua mão coberta por terno rendilhado tocar-me a face, e ouvi o meu nome sussurrado por detrás da máscara, em desejo. Alinhei o meu passo pelo dela e caminhei assim desejando-a. Um leque em brisa e uma rosa vermelha eram de Stefania, pertenciam à sua beleza como acessórios do corpo que queria, naquele “carnevale”. Queria e tive-a em quarto de cama com docel, onde Stefania me deitou. Assim estendido, com olhares filtrados por “toule”, vi-a em lento despir com máscara sem tirar. Olhos verdes rasgados por desenhos traçados com linhas negras e duas lágrimas douradas que lhe decoravam em toque triste, a face que eu sabia bela. O rendilhado negro das luvas prolongava-se por meias e lingerie. Mesma textura, mesmo cheiro, mesmo desenho que excita. Mesma cor nos cabelos agora soltos, perfumados, longos, cobrindo as costas morenas, em “carnevale”. Cornucópias douradas tatuadas em ombros e tornozelos que me surpreendem em rodopio, tomam vida quando caminhas para mim. Mascarada, agarras o meu corpo e prendes os meus sentidos. Todos os cinco, cuidadamente acordados por ti. O paladar dos teus seios, o perfume dos cabelos, o deslizar da tua pele untada de óleo de amêndoa, os teus olhos brilhando em verde e a tua voz gemendo em prazeres por detrás da máscara que não tiras. E assim, em “carnevale”, possuímo-nos em cortejo demorado onde os figurantes fomos nós. Espalhamos confetis em chuvas de orgasmos e atiramos serpentinas de desejos consumados, que se juntam em cornucópias à mascara que descansa, libertando o brilho verde dos teus olhos.

6.2.10

Lilith


Lilith era a senhora do palácio. Fama de encantadora de homens, mulher insaciável, com vontades, desejadas por todos aqueles que a viam passar, em caminhares altivos e colo semi-descoberto. Deixava sempre rastos de desejo no reino chamado de Nod. Lilith vivia rodeada de servas que a conheciam ao pormenor. Diria mesmo em todos os pormenores. Naqueles tempos, naqueles onde os anos não se contavam, aquelas mulheres passeavam-se nuas umas pelas outras, por entre incensos, frutas frescas e perfumes secretos de tamarindos acabados de colher. Lilith era bajulada, tocada, beijada pelas escravas em noites de luar dourado reflectido em adornos de pulsos e tornozelos, de corpos vestidos em transparências. O vinho corria-lhes sempre em gargantas sedentas de sexo. Bebiam-no em partilhas de bocas e beijos prolongados. Perdiam-se em descobertas de corpos morenos, onde os dedos e línguas serviam de garimpeiros à descoberta de tesouros escondidos em lugares recônditos dos corpos de fogo-fátuo. Eram elas também que cuidavam e preparavam todos os homens escolhidos por Lilith. Provavam-nos, gozavam dos seus corpos, banhavam-se no sémen libertado em jogos colectivos a várias mãos, durante o banho purificador tomado antes da passagem ao aposento principal.
Naquela manhã, no seu passeio matinal, Lilith visitou mais uma vez os pisadores de barro. Homens de músculos fortes, trabalhados por tarefas duras, longas e exigentes. Ali, o cheiro do barro misturado com a palha, destacava o odor dos suores corridos. Para a senhora do palácio, aqueles cheiros excitavam-na e constituíam factor de escolha. Mais uma vez isso aconteceu. O homem chegado na noite anterior era o alvo. Bom trabalhador, pouco falador e de sinal na testa, que ele fazia tentar passar como sendo de nascença. A túnica esfarrapada e suja, barrenta, colava-se no corpo suado, e o cheiro, como dardo, alvejava poros abertos da pele da senhora sedenta e insaciável. Escolha feita, ele, o pisador viajante dos tempos futuros e passados que ninguém conhecia.
Chamado ao palácio, logo foi recebido pelas escravas, conhecedoras das suas funções e direitos. As provadoras oficiais do reino. Conduzido por elas a um quarto separado, … foi despido e logo lavado dos pés a cabeça com água tépida. O contacto insistente e minucioso das mãos das mulheres provocou-lhe uma erecção que não pôde reprimir… elas riram e, em resposta redobraram de atenções para com o órgão erecto, a que, entre novas risadas, chamavam flauta muda, o qual havia saltado nas suas mãos com a elasticidade de uma cobra. O resultado, vistas as circunstancias, era mais do que previsível, o homem ejaculou de repente, em jorros sucessivos que, ajoelhadas como estavam, as escravas receberam na cara e na boca”. (in Caim de José Saramago)
Esta recepção deixou-o amedrontado e receoso das luxúrias vindouras. Quando entrou, encontrou Lilith nua, deitada em cetins que lhe realçavam o sorriso de serpente do paraíso. Ele sabia para o que ia. Na cidade, todos falavam dos apetites grandiosos da senhora, do seu corpo belo de princesa encantada, chamada de bruxa pelas invejas das mulheres que ouviam os murmúrios dos maridos adormecidos, sussurrando o nome da senhora, noites a fio. Com um sorriso, Lilith ordenou o início das actividades. Deixou um seio a descoberto, e as pernas entreabertas numa provocação experimentada. Ele no auge da sua inexperiência, deixou-se guiar pelo instinto acordado dentro de si e tratou daquele corpo tão bem cuidado com a experiência adquirida pelos músculos durante os trabalhos duros e violentos a que estava habituado. Uma violência doce fazia Lilith estremecer. Gemia rolava em cetins que ferviam agora com toda a intensidade das penetrações fortes, fundas, longas. As unhas cravavam-se em músculos suados, com restos de cheiros de barros pisados por marchas cadenciadas, que agora Lilith sentia dentro dela. Mordia-o ferozmente, como fera enraivecida. Marcava-lhe o corpo com linhas vermelhas e sulcos de dentes afiados. Os gritos de prazer e dor misturavam-se, transpiravam, ecoavam em todas as paredes do palácio, e procuravam as risadas invejosas das escravas que, como a sua senhora, não contiveram os sinais húmidos que em escorridos as enchiam de brilho nos olhos.